Cultura

Di Melo ressurge em parceria com banda francesa

O cantor pernambucano ressurge em disco com a banda francesa Cotonete e explica a relutancia em voltar a cantar o alegre hino black Kilario

Foto: Wanezza Soares
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Kilario/ raiou o dia/ eu vi chover em minha horta/ ai, ai, meu Deus do ceu,/ quanto eu sofri ao ver a natureza morta. A tristeza estava inscrita nos versos vivos de Kilario , de Di Melo, mas a sonoridade do samba-rock era pura alegria. Hoje, aos 70 anos, o cantor e compositor pernambucano do Recife mantem relacao conturbada com o maior sucesso popular de uma erratica carreira comercial, que ficou interrompida entre 1975, ano de Kilario, e 2015, quando ele lancou o autorreferente Imorrivel . Desaparecido Di Melo nesse interim, eram constantes os boatos de que ele teria morrido. Os discos que lancou nesse periodo passaram completamente despercebidos.

Eram exagerados os boatos. Di Melo ficou na retranca ate que, em 2009, ouvidos estrangeiros comecaram a prestar atencao nas faixas do antigo LP Di Melo (1975), em que figuravam musicos acompanhantes virtuosos como Hermeto Pascoal, Heraldo do Monte e Geraldo Vespar. O grupo de rap Black Eyed Peas sampleou Di Melo em um de seus discos. Imorrivel proporcionou a renascenca (quase) comercial, agora aprofundada pelo recem-lancado album duplo inedito Atemporal , dividido com a big band francesa Cotonete. Mais uma vez se repete a enfadonha historia do artista brasileiro que so renasce das cinzas depois de percebido por ouvidos gringos. Com exemplares de Di Melo vendidos na Europa a 700 euros, veio o documentario em media-metragem Di Melo ? O Imorrivel , dirigido em 2011 por Alan Oliveira e Rubens Passaro.

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Di Melo explicita a relutancia que exibe sempre que lhe pedem para executar Kilario : “Ela me remete a algumas coisas que foram tristes na minha vida. Quando foi gravada, era para ser uma coisa bonita, mas fui muito sacaneado naquela epoca. Me surrupiaram de todas as formas, me sacanearam sob todas as normas. Eu nunca falei isso para ninguem, mas sempre que me vem a mente Kilario surge a cena. No palco ela distribui energia e alegria. E uma musica iluminada, abencoada, mas so quem vive e que sabe e sente, nao e? Aconteceram coisas imperdoaveis, que me trouxeram ate aqui”. A sombra de tristeza aparece e logo e espantada pelo homem-alegria que Di Melo aparenta ser. Clareou, raiou o dia.

O compositor guarda 12 ineditas em parceria com Geraldo Vandre

Antes da estreia em disco e da relativa fama, Di Melo (ou Boby d’Melo, como Roberto de Melo Santos assinava no principio) foi guardador e lavador de carros no Recife. Mudou-se para Sao Paulo em 1968 e, ja engrenando na carreira artistica, viajou para trabalhar em Toquio, no Japao, onde Kilario foi composta. De volta a Sao Paulo, foi levado pela cantora de bossa negra Alaide Costa ao mitico bar Jogral, onde passou a se apresentar como numero de abertura. O sucesso veio com o LP que, alem de Kilario , trazia titulos de grande expressividade, agridoces, como A Vida em Seus Metodos Diz Calma , Conformopolis e Se o Mundo Acabasse em Mel .

Di Melo teve uma carreira interrompida por 40 anos, e acaba de lancar o album inedito Atemporal.? ( Foto: Acervo pessoal)

A cidade acorda e sai pra trabalhar/ na mesma rotina, no mesmo lugar (…) ela entao desperta, ela tenta gritar/ contra o que lhe aperta e que lhe faz calar/ mas ela, deserta, comeca a chorar, canta em sotaque nordestino o tango soul Conformopolis , metafora de um Brasil que teima em se perpetuar. Vai com calma, voce vai chegar vem na contramao a inspirada A Vida nos Seus Metodos Diz Calma . Nessa epoca, Di Melo passou a ter sucessos gravados por nomes mais ou menos black power, como Jair Rodrigues (Paspalho) e Wando (Volta), este em fase samba-rock, pre-romantica.

“O disco da Odeon estava tocando, tudo que puseram na rua vendeu”, Di Melo relembra a primeira rodada de gloria. “Fui receber o trimestre de direito autoral, vieram 11 cruzeiros. Fiquei desencantado, me senti dando murro em ponta de faca, assinando atestado de imbecil. Ai sai de cena, fui para as praias, nao levei o som mais a serio, fiquei curtindo, batendo viola em praia. Mas nunca parei de cantar e compor.” No documentario, ele fala sobre esse periodo: “Quando voce e jovem, acha que para voce o mundo nao vai acabar nunca. Mulher, bebida, noites, farras. Voce se perde”.

Di Melo filosofa sobre o que foi e o que poderia ter sido: “Nao fico chateado porque a vida foi ingrata comigo. Se eu tivesse a cabeca que tenho hoje, eu teria dado seguimento. Mas eu era muito jovem e decidi sair do lodacal. Quando a coisa tem que ser, voce persegue ela durante uma periodicidade e depois ela passa a te perseguir”.

Antes que Kilario passasse a persegui-lo, houve, nos anos 1980, o encontro de Di Melo com o homem para sempre perseguido por Pra Nao Dizer Que Nao Falei das Flores (1968). Na semiclandestinidade (de ambos), conheceu o paraibano Geraldo Vandre, com quem, revela agora, compos 12 cancoes, suficientes para um album inteiro Di Melo-Vandre. Uma delas, a latina Canta Maltina , foi apresentada no disco Imorrivel , e se vale de um idioma inventado, latino-indigena-brasileiro. Outra, Linhas de Alinhar , de acento nordestino, vem a luz no novo Atemporal . “A priori imaginei que Vandre quisesse que eu desse sequencia ao trabalho dele”, conta. “Ledo engano, ele queria passear. Gostou de mim porque eu estava cantando uma musica muito poderosa. Ele achou que eu poderia dar essa sequencia, e eu tambem imaginei que isso fosse rolar. A gente saiu viajando, fomos num Galaxy para a Paraiba, para o Paraguai.”

A cantora Alaide Costa levou Di Melo ao bar Jogral, e com Geraldo Vandre gravou parcerias. ( Foto: Acervo pessoal)

Linhas de Alinhar evidencia o que ja sabia quem ouviu o Di Melo de 1975: para la de um artista suingueiro de black music, Di Melo ostenta poderosa veia brasileira, nordestina, pernambucana. Misteriosa e narrada por alguem “farto da angostura”, a cancao fala de uma “explicacao que nao houve, nao ha, nem havera”, e de um “clima que apavora nessa estrada tao escura”. Linhas de Alinhar e exemplo perfeito daquilo que Di Melo diz sobre as proprias cancoes: “Qualquer musica minha tem nexo e tem plexo, nao so sexo”. No embalo, o interprete de Conformopolis critica o estado das coisas: “A musica esta resumida a peitos e bundas. E triste, e dolorido, porque voce trabalha, trabalha, trabalha e nao tem usufruto do teu trabalho”.

“Qualquer musica minha tem nexo e tem plexo, nao so sexo”

A sombra triste reaparece quando e hora de falar do Brasil atual. “Temos tudo pra ter tudo. Temos amianto, bauxita, prata, ouro, cobre, manganes, zinco. Mas nao vira, nao vira, e nao vai virar nunca. E tudo muito dificil. As vezes voce levanta o pe pra dar um passo pra frente e sente dando dez passos pra tras.” A vida, ele admite, segue dificil e distante dos metodos da calma: “A coisa chegou num momento crucial. Eu olho pro lado e nao vejo ninguem feliz, ninguem satisfeito. Todo mundo reclamando. Esta dificil pagar as contas. As pessoas estao cada vez mais perdendo tudo que conseguiram na vida. E so problema, problema, problema, problema. Nao vejo ninguem apontando muita solucao, e desesperador. As vezes voce quer conseguir andar e esta ali brecado, no freio de mao. E tudo muito estranho, errado, truncado”.

O album com o Cotonete (que em 2017 gravou um disco com outra brasileira, a paranaense Simone Mazzer) e o antidoto de Di Melo para as previsoes mais sombrias (“liberar armas nao e solucao, e daqui para frente vai piorar cada vez mais”). Entre as oito cancoes, ha uma regravacao alegre-e-triste de Kilario . Para explicar a contradicao e a relacao de amor e odio com Kilario , Di Melo se vale de uma antiga composicao do paraense Billy Blanco, Canto Chorado (1968). “Nunca vi uma coisa tao certa (declama): o que da pra rir da pra chorar/ questao so de peso e medida/ problema de hora e lugar”, gargalha.

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