A obra
A Red Record
(1895) de Ida B. Wells retrata a recorrente pratica de
linchamentos
de pessoas negras nas principais cidades sulistas dos
Estados Unidos
no
sec. XIX
. Trata-se de um trabalho jornalistico que utiliza de estatisticas publicadas em diversos jornais da epoca com o objetivo de descrever e denunciar o que Wells chama de “Lei do Linchamento”
(Lynch Law).
Carta de
Frederick Douglass
a Ida B. Wells:
Prezada Senhorita Wells,
Deixe-me agradece-la por seu fiel artigo sobre os abominaveis linchamentos agora praticados em geral contra pessoas de cor no Sul. Nao houve palavra igual a sua em poder de convencimento. Eu tenho falado, mas minha palavra e debil em comparacao. Voce nos da o que sabe e testemunha com base no conhecimento real. Voce lidou com os fatos com uma fria e diligente fidelidade, e deixou esses fatos nus e incontestes falarem por si mesmos. Brava mulher! Voce prestou ao seu povo e ao meu um servico que nao pode ser nem pesado nem medido. Se a consciencia americana estivesse ao menos meio viva, se a Igreja e o clero americanos fossem ao menos meio cristianizados, se a sensibilidade moral americana nao fosse endurecida pela aflicao persistente do ultraje e do crime contra pessoas de cor, um grito de horror, vergonha e indignacao subiria ate o Ceu onde quer que seu panfleto seja lido. Mas infelizmente! ate mesmo o crime tem o poder de se reproduzir e criar condicoes favoraveis a sua propria existencia. As vezes parece que estamos abandonados pela terra e pelo Ceu - ainda assim, nos devemos pensar, falar e trabalhar, e confiar que o poder de um Deus misericordioso trara a libertacao final.
Com muita sinceridade e gratidao,
? Frederick Douglass
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Capitulo I - O caso declarado
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Na epoca da
escravidao
, o objetivo do homem branco era dominar a alma do homem negro e preservar seu corpo para o trabalho, mantendo-o subserviente. Entretanto, com a
Emancipacao
, e, com isso, a quebra do sistema de dominacao por meio da
escravidao
, o povo branco sulista passou a adotar diferentes estrategias de dominacao sobre o povo negro. Com isso, um novo sistema de intimidacao passou a valer: o negro deixou de ser acoitado e passou a ser assassinado. Ida B. Wells inicia o capitulo I de
A Red Record
mencionando que, nas ultimas tres decadas, apenas uma pequena parte dos assassinatos cometidos por homens brancos contra pessoas negras vieram a tona. Contudo, as proprias noticias publicadas nos jornais, cujos donos eram tambem homens brancos, poderiam ser sistematizadas para provar que, nesse periodo de tempo, mais de dez mil pessoas negras foram assassinadas a sangue frio sem um julgamento legal. Segundo a autora, na medida em que ha uma ideologia racista que sustenta a pratica de
linchamento
, que sistematica e intencionalmente esconde ou justifica tal pratica atraves de mentiras e distorcoes, e necessario oferecer o outro lado da historia.
Torna-se um doloroso dever do negro reproduzir um registro que mostra que uma grande parte do povo americano confessa a anarquia, tolera o assassinato e desafia o desdem da civilizacao. Estas paginas nao foram escritas com espirito vingativo, pois todos que consideram o assunto devem admitir que e muito grave a condicao daquele governo civilizado em que o espirito de desenfreado desacato a lei aumenta constantemente em violencia e lanca sua praga sobre uma area crescente do territorio. Nos imploramos nao apenas pelas
pessoas de cor
, mas por todas as vitimas da terrivel injustica que leva homens e mulheres a morte sem a formalidade da lei. Durante o ano de 1894, houve 132 pessoas executadas nos Estados Unidos pela devida formalidade da lei, enquanto no mesmo ano, 197 pessoas foram mortas por turbas que nao deram as vitimas a oportunidade de fazer uma defesa legal. Nenhum comentario precisa ser feito sobre a condicao do sentimento publico responsavel por resultados tao alarmantes. O proposito das paginas que se seguem sera dar o registro que foi feito, nao por homens de cor, mas daquilo que e resultado de compilacoes feitas por homens brancos, de relatorios enviados ao mundo civilizado por homens brancos do
Sul
. De suas proprias bocas os assassinos serao condenados. Por varios anos, o
Chicago Tribune
, reconhecidamente um dos principais jornais da America, tornou a compilacao de estatisticas sobre linchamento uma especialidade. Os dados compilados por aquela revista e publicados ao mundo em 1º de janeiro de 1894, ate o presente, nao foram contestados. A fim de evitar a acusacao de exagero, os incidentes a seguir relatados foram confinados aos atestados pelo
Tribune
(p. 77-78, WELLS).
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O
linchamento
por parte do homem branco foi sempre acompanhado de uma justificativa especifica que tinha como objetivo legitimar a pratica na esfera publica. Wells fez uso da estatistica para mostrar, pelo poder da agregacao de dados, que tais justificativas eram infundadas e incoerentes (Murakwa, 218)
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. Pelo menos tres justificativas foram dadas ao longo das tres decadas para sustentar tamanha violencia. A primeira justificativa dada para o assassinato de pessoas negras foram os supostos “motins raciais”. De 1865 a 1872, centenas de pessoas negras foram impiedosamente mortas, sendo que a caracteristica notavel de tais eventos e a de que apenas pessoas negras foram mortas, enquanto todos os homens brancos escaparam ilesos. A verdade, ressalta Wells, e que nenhuma
insurreicao
jamais aconteceu, nenhuma pessoa negra sequer foi presa ou provada culpada de participar de motins.
Membros da
Ku Klux Klan
, 17 de marco de 1922.
Quando o homem branco do Sul nao mais conseguiu sustentar tal mentira, surge a segunda justificativa. Gracas a
15° Emenda da Constituicao
, o povo negro recebeu o direito ao voto e, em teoria, sua cedula se tornou um emblema de cidadania. Mesmo com direitos politicos formalizados na Constituicao, as pessoas negras enfrentaram severas dificuldades para exercer seu direito de voto ou a expressao publica de suas opinioes politicas. Wells aponta que, segundo o sulista, o homem branco deveria governar, o que resultou no imperativo “Nenhuma dominacao negra?” atraves de grupos
reacionarios
extremistas
como a
Ku Klux Klan
, os
Reguladores
e as multidoes raivosas. Os
massacres
em
Yazoo
,
Hamburgo
,
Edgefield
, Copiah ficaram famosos pela brutalidade de tais grupos. O povo negro lutou sem exito pelo direito a cidadania, o Estado americano que fez do negro um cidadao se viu incapaz de protege-lo, e a vitoria do homem branco veio, mas repleta de fraude, violencia e assassinato. Wells ainda ressalta que o direito ao voto concedido ao povo negro nasceu e cresceu para ser uma “idealidade esteril”,
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]
ja que este nao tinha voz no ambito politico e social.
Ora, com os governos do
Sul
subvertidos, o povo negro excluido de toda participacao nas eleicoes estaduais e nacionais, a tese de “dominacao negra” perdeu forca e a segunda desculpa dada pelo homem branco perdeu valor. Entretanto, a brutalidade sanguinaria continuou, os negros seguiram sendo violentados a luz do dia, mas o mundo civilizado, como diz a autora, passou a responsabilizar com certa persistencia os brancos do Sul por seus crimes. E neste contexto que surge a terceira desculpa: os negros deveriam ser mortos para vingar as agressoes as mulheres. Esta justificativa, por sua vez, nao poderia ser mais prejudicial ao negro e benefica ao homem branco, ja que a sociedade, pelo menos e tese, jamais aceitaria que as mulheres fossem violentadas.
Assim, a sociedade acreditou na desculpa dada pelo homem branco. Para um homem branco do Sul, qualquer relacao existente entre uma mulher branca e um homem negro e fundamento suficiente para a acusacao de estupro, ja que para o sulista e impossivel existir uma alianca voluntaria entre ambos. Logo, qualquer relacao interracial existe sob coercao. Sao numerosos os casos, salienta a autora, em que homens negros foram linchados ate a morte mesmo sendo indiscutivelmente provado que a relacao se dava de forma consensual.
Wells reitera que durante todos os anos de
escravidao
jamais foram feitas acusacoes de estupro contra o homem negro, nem mesmo no decorrer dos conturbados dias da rebeliao durante a
Guerra da Secessao
.?Ou seja, nem quando o homem branco foi a
guerra
lutar pela manutencao do sistema de escravidao ocorreram tais acusacoes de abuso sexuais praticado por homens negros. Do mesmo modo, durante o periodo de supostos motins raciais, nunca ocorreu ao homem branco que as mulheres de suas familias estivessem em perigo de agressao; bem como na era da Reconstrucao, quando o clamor foi contra a suposta tentativa de dominacao negra. Assim, para justificar a propria barbarie, o homem branco se utilizou da ameaca de estupro de mulheres brancas por homens negros para estabelecer a logica de criminalizacao da populacao negra.
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Capitulo II - Estatisticas da lei do linchamento
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No capitulo II, Wells traz as estatisticas do que ela chama de “Lei do Linchamento” (Lynch Law), com base nos dados compilados no jornal
Chicago Tribune
, publicados no final de cada ano. A autora sistematiza e organiza os casos de linchamento da seguinte forma: crime imputado, data, nome da vitima e local do linchamento. Alguns dos crimes imputados as pessoas negras sao: incendio, envenenamento de gado, envenenamento de poco, agressao, insulto a brancos, preconceito racial, assassinato e estupro ? tendo este ultimo o maior numero de vitimas. Wells acrescenta que no ano anterior, 1892, nem um terco das vitimas linchadas foram acusadas de estupro. Segue um trecho do Cap. II e a forma de sistematizacao de Wells:
ESTUPRO: Jan. 19, James Williams, Pickens Co., Ala.; Fev. 11, negro degsconhecido,
Forest Hill
, Tenn.; Fev. 26, Joseph Hayne, ou Paine,
Jellico
, Tenn.; Nov. 1, Abner Anthony,
Hot Springs
, Va.; Nov. 1, Thomas Hill, Spring Place, Ga.; 24 de abril, John Peterson,
Denmark
, S.C.; 6 de Maio, Samuel Gaillard, ??, S.C.; 10 de maio, Haywood Banks, ou Marksdale,
Columbia
, S.C.; 12 de Maio, Israel Halliway,
Napoleonville
, La.; 12 de maio, negro desconhecido,
Wytheville
, Va.; 31 de Maio, John Wallace, Jefferson Springs, Ark.; 3 de Junho, Samuel Bush, Decatur, Ill.; 8 de Junho, L. C. Dumas,
Gleason
, Tenn.; 13 de Junho, William Shorter,
Winchester
, Va.; 14 de Junho, George Williams, perto de
Waco
, Tex.; 24 de Junho, Daniel Edwards, Selina or
Selma
, Ala.; 27 de Junho, Ernest Murphy,
Daleville
, Ala.; 6 de Julho, negro desconhecido, Poplar Head, La.; 6 de Julho, negro desconhecido, Poplar Head, La.; 12 de Julho, Robert Larkin, Oscola, Tex.; 17 de Julho, Warren Dean, Stone Creek, Ga.; 21 de Julho, negro desconhecido,
Brantford
, Fla.; 17 de Julho, John Cotton, Connersville, Ark.; 22 de Julho, Lee Walker,
New Albany
, Miss.; 26 de Julho, ?? Handy, Suansea, S.C.; 30 de julho, William Thompson,
Columbia
, S.C.; 28 de Julho, Isaac Harper,
Calera
, Ala.; 30 de Julho, Thomas Preston, Columbia, S.C.; 30 de Julho, Handy Kaigler,
Columbia
, S.C.; Ago. 13, Monroe Smith, Springfield, Ala.; Ago. 19, negro desconhecido, perto de
Paducah
, Ky.; Ago. 21, John Nilson, perto de
Leavenworth
, Kan.; Ago. 23, Jacob Davis,
Green Wood
, S.C.; Set. 2, William Arkinson, McKenney, Ky.; Set. 16, negro desconhecido, Centerville, Ala.; Set. 16, Jessie Mitchell, Amelia C. H., Va.; Set. 25, Perry Bratcher,
New Boston
, Tex.; Out. 9, William Lacey,
Jasper
, Ala.; Out. 22, John Gamble,
Pikesville
, Tenn (p. 81-82, WELLS).
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A estrategia de Wells pretendia nao apenas denunciar a incoerencia das alegacoes a favor dos linchamentos, mas ainda mostrar o modo como a ideologia racista invertia suas acoes, ao marcar as vitimas como criminosos e os criminosos como vitimas (Murakawa, 2018)
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. Isso fica claro nos capitulos posteriores, quando a autora denomina os titulos dos capitulos com os crimes atuais dos linchadores brancos. Ou seja, o restante do livro e uma organizacao dos crimes e assassinatos praticados por brancos. De acordo com Murakawa, Wells realiza uma modificacao no modo como os linchamentos sao anunciados, a fim de mostrar como a ideologia da supremacia branca justificava seus crimes atraves da “construcao social da ameaca criminal negra”, ou seja, atraves da identificacao de pessoas negras como criminosos. Para isso, Wells expoe apenas vitimas negras de linchamento e organiza os dados de acordo com o suposto crime realizado pelas vitimas.
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Capitulo III -?Linchamento de "imbecis"
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No capitulo III, Wells pretende jogar luz sobre a incoerencia do homem branco sulista que, embora seguro de sua benevolencia, acoitou e linchou pessoas negras incapazes de serem responsabilizadas por seus atos. Isto e, existe o principio legal e social de salvaguardar a vida humana, de modo a impedir a execucao de um criminoso caso este seja considerado “imbecil” (i
mbeciles
) ? termo pejorativo usado pela autora que abrange a deficiencia intelectual, os
disturbios psiquicos
e vicios, como o
alcoolismo
. Este fato, entretanto, jamais impediu o homem branco de violentar e linchar pessoas negras em tais condicoes. O primeiro caso conta que Hamp Biscoe, sua esposa e seus dois filhos foram brutalmente assassinados, ainda que a condicao psiquica de Biscoe, que sofria de
Transtorno de Personalidade Paranoide
(TPP), fosse amplamente conhecida pela comunidade. Ja o segundo caso narra que Henry Smith foi cruelmente torturado e queimado vivo sob grande comocao da comunidade, que comemorou o linchamento, embora fosse de conhecimento geral que Smith sofresse com o
alcoolismo
. Trecho do relato do reverendo King que teria tentado impedir o linchamento de Smith:
Eu o odiei por seu crime, mas dois crimes nao fazem uma virtude; e na breve conversa que tive com Smith eu fiquei mais firmemente convencido do que nunca de que ele era irresponsavel. Eu conhecia Smith ha anos, e houve momentos em que Smith esteve fora de si por semanas. Ha dois anos me esforcei para coloca-lo em um asilo, mas os brancos estavam tentando imputar a ele o assassinato de uma jovem de cor e nao quiseram ouvir. Por dias antes do assassinato da garotinha Vance, Smith estava fora de si e era perigoso. Ele acabara de sofrer um ataque de
delirium tremens
e nao estava em condicoes de ser liberado. Ele percebeu sua condicao, pois falei com ele ha menos de tres semanas e, em resposta as minhas exortacoes, ele prometeu se reformar. A proxima vez que o vi foi no dia de sua execucao (p. 91-92, WELLS).
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Capitulo IV - Linchamento de homens inocentes
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O capitulo IV aborda o linchamento em ocorrido em
Louisiana
, em julho de 1893, de um homem negro chamado Roselius Julian, apos atirar e matar um homem branco, o juiz Victor Estopial. Alegou-se que Julian havia disparado por ressentimento em funcao de um insulto feito a sua esposa, porem o que motivou o crime de Julian foi a defesa de sua casa. Julian fugiu, nunca sendo encontrado. Devido a isso, seus irmaos foram linchados em seu lugar.
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Capitulo V - Linchamento por qualquer coisa ou nada
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No capitulo V foram apresentados casos de linchamentos dos anos 1891, 1892 e 1893. Os casos de linchamentos do ano de 1893 nao tiveram grande relevancia para a comunidade, mesmo havendo a necessidade de se relatar e tratar das causas que levaram a tais crimes. De certa maneira, isso demonstra que a Lei de Linchamento se normalizou nos Estados Unidos, pois as autoridades que tinham o poder de fazer justica simplesmente ignoraram ou se mostraram indiferentes.
Houve tambem o linchamento como resultado de uma suposta agressao em
Memphis
,
Tennessee
, uma das cidades mais ricas dos
Estados Unidos
a epoca. Duas mulheres estavam em uma carroca em direcao a cidade, quando foram surpreendidas por Lee Walker. Ele dizia estar com fome, mas elas afirmaram que ele tentou agredi-las. Como era de costume, o alarde foi feito e logo a noticia se espalhou pela cidade. Walker foi encontrado, preso e entao linchado ate a morte. Indiferente, a populacao assistiu a todo o cenario terrivel. Esse linchamento foi noticiado nos jornais Chicago Inter Ocean e Public Ledger, nao sendo possivel alegar que as autoridades nao tinham conhecimento do ocorrido. Nada foi feito: nenhuma investigacao ou julgamento foi realizado.
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Capitulo VI - Historico de alguns casos de estupro
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No capitulo VI, Wells relata casos em que homens negros sao acusados de agredir mulheres brancas, e de homens brancos que abusaram de pessoas negras do sexo feminino, incluindo meninas. Conforme Wells, era imprescindivel assegurar o direito a defesa para as pessoas negras acusadas de cometer
estupros
. O povo negro teve a necessidade e foi forcado a defender seu nome, a mostrar que o crime de estupro era infundado, nao passando de suposicoes carregadas de preconceito. A autora Linda O. McMurry, em
To Keep the Waters Troubled: The Life of Ida B. Wells
, a respeito das falsas acusacoes de estupro
[...] despojando os homens negros nao apenas de seu poder, mas tambem seu orgulho. Os homens brancos do sul definiram a masculinidade em parte como a capacidade de proteger suas mulheres "indefesas". Para negar a masculinidade negra, eles proibiram qualquer contato sexual entre homens negros e mulheres brancas, ao mesmo tempo em que reivindicam elas mesmas o direito de acesso sexual as mulheres negras. O linchamento foi uma grande ferramenta para a emasculacao dos homens negros. Para apoiar os seus homens e para contrariar os desafios a masculinidade negra, as mulheres negras geralmente assumiam alguns dos papeis desempenhados pelas mulheres brancas nesta sociedade patriarcal. Eles tambem deveriam ser submissos e dar apoio em vez de para fornecer lideranca. (p. 14, 1998).
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Em
Arkansas
, Edward Coy foi amarrado em uma arvore e linchado aos olhos de quinze mil pessoas que assistiram do inicio ao fim o seu martirio. Coy foi perseguido apos ser delatado pela mulher com quem teve um relacionamento, devido a ameacas que esta sofreu. Mesmo havendo o consentimento de ambas as partes no relacionamento em meio privado, quando o romance veio a tona, Coy se tornou um suposto agressor.
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Capitulo VII - A cruzada se justifica
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No capitulo VII, na secao "
Um apelo da America para o mundo"
, Wells se dirige a outras nacoes para mostrar em que circunstancias ocorreram os casos de linchamento pelos
Estados Unidos
, e argumenta que a sua cruzada se justifica como movimento politico para o fim desses casos hediondo de "abate de seres humanos" e por uma melhora nas condicoes de vida das pessoas negras. Ela acrescenta que esses recorrentes atos de violencia sao realizados com a cumplicidade da policia, dos governantes e do Estado que, ao inves de garantir o direito de defesa dessas pessoas que foram massacradas pela Lei dos Linchamentos, que habilitou os perpetuadores brancos a permanecerem impunes nos estados do
Sul
do pais.
Na secao "
Horrorosa Barbarie Ignorada"
, Wells narra como e vingativa e moralmente reprovavel a acao dos agressores, e detalha o envolvimento da policia em pelo menos um desses ataques. Segundo conta, em setembro e outubro de 1894, seis homens pretos foram vitimados em um massacre horrendo. A propria Policia de
Memphis
teria dirigido os acusados ate uma emboscada, onde foram fuzilados. Eles estavam sob custodia policial e teriam declarado que poderiam facilmente provar em julgamento, que eram inocentes das acusacoes prestadas contra eles. Wells aponta que segundo os valores propagados pelos
fundadores dos EUA
, qualquer cidadao deveria ficar escandalizado com tamanha demonstracao de barbarie e de injustica. Ao contrario, descreve com grande indiferenca o comportamento da midia e de grande parte dos cidadaos do Sul ao crime.
Na secao intitulada
"O acordar da America"
, Wells mostra que o terrivel massacre citado anteriormente rendeu um posicionamento do Gov. Jones, de
Alabama
, no qual lamenta que as pessoas tenham sido raptadas enquanto estavam sob custodia policial, e que tenham sido assassinadas. Ele clama que situacoes como essas nao se resolvem sem que seus culpados sejam indiciados, que a solucao (remedio) para crimes como esses nao ocorrem no silencio, que promove esse sentimento coletivo de aprovacao sobre esses atos hediondos. Pois o silencio indica que ou a policia aprova esses crimes ou e muito fraca para puni-los. Em ambos os casos, devemos clamar por melhorias na conduta policial para prevencao de futuros crimes deste tipo.
Por fim, em
"Um amigavel aviso"
, a autora relata como o estabelecimento do comite anti-linchamentos deu resultados apos a adesao de pessoas influentes, mesmo a campanha midiatica contra Wells nao foi capaz de controlar a adesao de um boicote, pois industrias britanicas, mesmo que nao politizadas, decidiram nao investir em estados cujos massacres da populacao negra estivessem acontecendo. As razoes pelas quais nao haveria investimentos de capital ingles nesses
estados do Sul
diz respeito a
mao-de-obra
. Segundo consta no
London Times
, forte opositor do comite anti-linchamentos, as empresas britanicas nao investiriam em industrias em solo sulista, onde?esses ataques estivessem acontecendo, porque grande parte da sua mao de obra seria composta de
trabalhadores
negros mal remunerados. Isso fez com que os lideres de Estados sulistas questionassem se permitir esse comportamento vingativo e sangrento de seus cidadaos valeria a perda do capital ingles.
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Capitulo VIII - A posicao da senhorita Willard
editar
Frances Willard
O capitulo explora o posicionamento da Srta.
Frances Willard
como modelo de opiniao publica da epoca sobre os recorrentes casos de
linchamento
. Neste capitulo, podemos observar as justificativas dadas para o uso do linchamento da populacao negra, que tambem ficaram conhecidas como
"as tres desculpas
" que foram mais usadas para justificar o exterminio da populacao negra: 1) da necessidade de conter revoltas de cunho racial; 2) da necessidade da manutencao do poder atraves da vantagem numerica do voto; 3) da construcao social da criminalizacao da populacao negra.
Willard liderou a Woman's Christian Temperance Union (WCTU), que, segundo Wells, seria na epoca a mais poderosa ONG de mulheres dos EUA. A autora questiona por que a WCTU, que oferece ajuda humanitaria aos mais necessitados, nao se posiciona contra os linchamentos recorrentes nos estados do Sul, visto que a populacao negra seria aquela que se encontra em maior vulnerabilidade social devido ao periodo da escravidao. Wells se questiona se evitar linchamentos nao seria uma pauta legitima para a associacao crista, alem de pontuar a omissao da WCTU, assim como dos demais cristaos, que demonstrava indiferenca a barbarie recorrente?nos estados do Sul.
A autora tambem acrescenta que Willard, em seu discurso anual realizado em 5 de Novembro de 1894, como lider da organizacao WCTU, ataca o movimento anti-linchamento. Wells conta que a Srta Willard lamenta brevemente os numerosos linchamentos de 84, mas que no seguinte paragrafo dispara contra a jornalista.
Frances Willard argumenta que exigir um posicionamento da WCTU. contra os linchamentos e a atuacao das
milicias
, conhecida como "
Lynch Law
", seria colocar este fardo injustamente sobre a metade da populacao branca, composta por mulheres. Mas Wells argumenta que para uma ativista dos direitos das mulheres e defensora de reformas morais, nao parece inadequado questiona-la sobre sua agenda, em especifico sobre o que se tem feito para evitar futuros casos de linchamentos. Para Wells, fica clara a conivencia da WCTU com os linchamentos como o metodo vigente de coercao popular contra negros nos
estados do Sul
.
Eu disse na epoca e repito agora, que em todos os dez terriveis anos de tiroteio, enforcamento e queima de homens, mulheres e criancas nos Estados Unidos, a Uniao Crista de Mulheres de Temperanca nunca sugeriu um plano ou fez um movimento para evitar esses crimes terriveis (p.138, WELLS).
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19
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Essa declaracao resultou em um processo da Srta. Willard contra Ida Wells, no qual a autora perdeu. Como a?Srta. Willard nao conseguiu negar a verdade destas afirmacoes, foi feita a acusacao de que Ida Wells teria atacado a Srta. Willard e deturpado a imagem da WCTU. A seguir, podemos identificar como no discurso da ativista crista se articulam "as tres desculpas" nas seguintes declaracoes. Embora a Srta. Willard vivesse nos Estados do Norte ela se mostra favoravel ao modo de vida sulista:
Srta. Willard: Eles tem as tradicoes, a bondade, a probidade, a coragem de nossos antepassados. O problema em suas maos e imensuravel. Pois a 'raca negra' se multiplica como os gafanhotos do
Egito
.
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19
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Observa-se que, segundo a Ativista Crista, o aumento da populacao negra e considerado um enorme problema social, alem do obvio paralelo racista tracado entre a populacao negra e
as sete pragas do Egito
. Como podemos ver nos trechos destacados, a populacao branca temia perder o poder sobre a populacao negra, poder considerado legitimo no periodo da
escravidao
. Com o final da
Guerra da Secessao
, a escravidao foi abolida nacionalmente, entretanto, os metodos de coercao da populacao negra empregados nesse sistema permaneceram vigentes, pois havia o medo de que os recem libertos se rebelassem. A desculpa numero dois aparece novamente quando a Srta. Willard se posiciona em defesa do modo de vida sulista e seus valores:
Agora, quanto ao 'problema racial' em seu significado minucioso e atual, sou uma verdadeira amante do povo do sul - falei e trabalhei em, talvez, 200 de suas cidades e vilas; fui levada ao seu amor e confianca em dezenas de fogueiras hospitaleiras;(...). Acho que nos [cidadaos do Norte] prejudicamos o Sul, embora nao tivessemos a intencao de faze-lo. A razao foi, em parte, o fato de termos nos enganado irremediavelmente ao nao colocarmos nenhuma protecao nas urnas do Norte que separaria os analfabetos. Eles governam nossas cidades hoje; o salao e o palacio dele. Nao e justo que eles votem, nem e justo que um negro de plantacao, que nao sabe ler nem escrever, cujas ideias sao limitadas pela cerca de seu proprio campo e pelo preco de sua propria mula, seja encarregado da cedula. Deveriamos ter colocado um teste educacional na cedula desde o primeiro momento (p.135, WELLS).
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A desculpa numero dois aparece mais uma vez quando a Srta. Willard dispara:
"O fato e que os negros analfabetos nao votarao no
Sul
ate que a populacao branca opte para que o facam; e em condicoes semelhantes eles nao o fariam no
Norte
" (p.136, WELLS).
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19
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Deste modo, a autora relata que durante o periodo da
Reconstrucao dos Estados Unidos
, era comum que homens brancos meio bebados assassinassem pessoas negras proximas das urnas, ou as intimidassem para que nao votassem. A desculpa numero tres aparece no argumento da Srta. Willard, que afirma que os linchamentos seriam usados como medida preventiva:
A seguranca da mulher, da infancia, do lar, esta ameacada em mil localidades neste momento, para que os homens negros nao ousem ir alem da visao de sua propria arvore de cobertura?(p.135, WELLS).
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19
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Ou seja, a desculpa numero tres posiciona todo homem negro como provavel assassino e predador sexual. Assim, o argumento em defesa das mulheres (brancas) e da familia e fundamentado na prerrogativa de que pessoas negras seriam mais violentas; mais propensas a criminalidade e abusos sexuais: ser negro e igual a ser criminoso. Portanto, para a Srta. Willard, e aqueles que compartilham seu posicionamento, os homens brancos milicianos tem o direito de perseguir e assassinar pessoas negras, pois essa violencia cometida por brancos e avaliada como uma medida preventiva. Pois a sua finalidade e reduzir a criminalidade (negra) e tornar a sociedade um ambiente mais seguro para brancos.
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Capitulo IX - O registro de linchamento para 1894
editar
No capitulo IX, foram apresentadas mais estatisticas sobre linchamentos retirados por Wells das colunas do
Chicago Tribune
em 1 de janeiro de 1895. Elas mostram, entre outras coisas, que em
Louisiana
, de 23 a 28 de abril, oito negros foram linchados porque um homem branco foi morto pelo negro, este ultimo agindo em legitima defesa. Mas apenas sete deles?foram indicados na lista. Ja no condado de
Brooks
, Ga., 23 de dezembro, enquanto o pais cristao se preparava para a celebracao do
Natal
, sete negros foram linchados em vinte e quatro horas porque?se recusaram, ou nao puderam dizer o paradeiro de um homem negro chamado Pike, que matou um homem branco. As esposas e filhas destes homens linchados ficaram horrivelmente e brutalmente indignadas com os assassinos de seus maridos e pais. Mas a multidao nao foi punida.
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Wells realizou um trabalho investigativo e sistematico ao recolher as noticias vinculadas no jornal nas datas em que os supostos crimes pelos quais homens negros foram linchados teriam ocorrido. Assim, ela encontrou muitas incongruencias na narrativa criada pela policia aos fatos relacionados ao crime. Podemos perceber que a autora se utiliza dos recursos quantitativos para situar o leitor do contexto social em que esses crimes foram cometidos. O periodo da
Reconstrucao dos Estados Unidos
foi terrivelmente marcado por inumeros casos de linchamentos de homens negros. Entretanto, a maneira como Wells apresenta os casos ao longo desta obra e ainda mais relevante ja que ela organiza os casos em categorias de acordo com a acusacao que consta na queixa-crime. Se analisarmos estatisticas como a autora as expoe, ao inves de estarmos analisando uma vasta lista de suspeitos de delitos violentos, como estupro e assassinatos, estaremos frente a lista de homens negros que foram linchados por homens brancos, sem o direito de defesa.
Wells argumenta que a finalidade desse panfleto nao e alegar que todos os mil homens, mulheres e criancas negras,?? enforcados, baleados e queimados vivos neste periodo de dez anos ? eram inocentes das acusacoes feitas contra eles. Mas, sim, evidenciar que a punicao nao e a mesma para as classes de criminosos, visto que no linchamento nao e dado ao negro a oportunidade de se defender contra as acusacoes nao infundadas de homens e mulheres brancos. Ja esta estabelecido que a palavra do acusador e a unica considerada verdadeira e a articulacao da milicia exige que o
Estado de direito
seja revertido.?O onus da prova foi invertido, pois em vez de se provar que o acusado e culpado, o inverso acontece: e a vitima desse crime de odio quem deve provar a sua inocencia. Mas nesse contexto, nenhuma prova que ele possa oferecer satisfara a mobilizacao do poder paralelo.?Wells descreve que, nesse cenario, "o homem ja esta atado de maos e pes e se atira para a eternidade". E que depois, para justificar tamanha barbaridade, esse mesmo poder paralelo quase sempre relata que a vitima fez uma confissao completa antes de ser enforcada.
Primeiramente, os acusados em sua maioria foram indiciados por crimes diferentes daqueles descritos nas reportagens. Por exemplo, dado individuo teria sido linchado supostamente por tentativa de homicidio, nas reportagens da epoca o jornal nao noticiou nenhuma tentativa de homicidio nas datas correspondentes. Ou entao, caso tenha noticiado algum crime cometido, seria algum delito menos violento. Fato e que muitas das informacoes dadas a policia nao correspondem ao suposto crime cometido. Aparentemente os dados ou eram falsos ou foram alterados para que as acusacoes de crimes como estupro e assassinatos aparecessem como o principal motivo dos
linchamentos
. O que Wells exige, portanto, e que a
justica
seja feita baseada em fatos, nao em especulacoes moralmente comprometidas. Que se garanta o julgamento justo por lei para todos os acusados de crime, e que se execute a punicao determinada por lei apos a condenacao honesta. Nao e solicitada simpatia pelos criminosos, apenas que a lei seja aplicada a todos da mesma forma. O que e requisitado no manifesto Red Record e que aqueles que controlam as instituicoes publicas garantam o devido cumprimento da lei.
Assim como aqueles que aderirem ao movimento estimulem a propagacao do conhecimento dos fatos envolvidos nos crimes da milicia, para que os sentimentos morais nao sejam inflamados com afirmacoes falsas e representacoes enganosas sobre o carater da populacao negra. Para que a America seja verdadeiramente a "terra dos livres e o lar dos corajosos" e necessario que investigacao empirica dos supostos crimes prevaleca, mas tambem que a opiniao publica possa ser readequada para o momento historico pos abolicao da escravatura, atraves do abandono do sistema de
coercao
herdado do
sistema escravocrata
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