Ha dimensoes do Massacre de Batepa silenciadas na narrativa publica, tanto em Portugal como em Sao Tome e Principe, mas que emergem nas representacoes artisticas, sobretudo na literatura, sustenta a investigadora Ines Nascimento Rodrigues.? O Massacre de Batepa, em 1953, em Sao Tome e Principe, foi desencadeado essencialmente pelas relacoes laborais do sistema colonial, adotadas nas rocas de cacau e cafe da ilha.

O evento e quase ignorado em Portugal e em Sao Tome e “mitificado e serve para legitimar a nacao e o partido no poder”, afirma, a agencia Lusa, Ines Nascimento Rodrigues, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

“Em Portugal, este evento ainda e praticamente desconhecido”, parecendo sinalizar “a recusa em discutir um episodio que perturba a grande narrativa nacional pos-imperialista de um colonialismo mais benigno e mais pacifico que os outros”, admite Ines Nascimento Rodrigues, rejeitando, no entanto, a ideia de que ha formas de colonialismo mais ou menos violentas.

O Massacre, cujas vitimas foram transformados em herois, serve para Sao Tome e Principe “veicular uma identidade coletiva partilhada” e assinalar a identidade nacional. A?12 de julho de 1975 assinala-se a independencia de?Sao Tome e Principe de Portugal, que faz este ano 40 anos.

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Mas a transformacao de Batepa em simbolo da identidade nacional obscurece “as cisoes internas que existiam entre a propria populacao colonizada”, adverte a investigadora, que esta a fazer doutoramento em “pos-colonialismos e cidadania global”, a partir do episodio ocorrido no arquipelago, ha 62 anos.

O Massacre de Batepa, “como ficaram conhecidos os acontecimentos iniciados em 3 de fevereiro de 1953” ? Dia dos Martires da Liberdade, feriado nacional ? nao resultou de “uma simples explosao”, foi “o culminar de um processo continuo de violencia”, propria do “sistema colonial”, que hierarquizava “profundamente” a sociedade e a “dividia em linhas de poder” acentuadas.

Em Sao Tome e Principe, havia discriminacao e hierarquias entre os forros (descendentes de escravos alforriados) e os “trabalhadores contratados para trabalharem nas rocas”, oriundos de outras colonias portuguesas, e tambem no seio destes, salienta a investigadora, exemplificando que “os contratados idos de Cabo Verde estavam ligeiramente acima” dos angolanos ou dos mocambicanos igualmente contratados para trabalharem nas rocas.

Aqueles trabalhadores foram para Sao Tome num “regime de escravatura, mascarado de contrato” e viviam em “situacoes muito precarias” e sob forte marginalizacao, tanto por parte dos “colonizadores e administradores das rocas”, como por parte dos nativos, ambiente que propiciou o massacre e a instrumentalizacao, por parte do poder colonial, dos trabalhadores contratados, que acabaram por ser os principais executores.

“Com a luta pela independencia, a narrativa nacionalista apagou a participacao” dos trabalhadores contratados no massacre ? era necessario unir toda a populacao contra o inimigo comum, que era o colonizador, refere a investigadora, sublinhando que, “com este apagamento, apagou-se tambem o lugar destas pessoas na narrativa fundadora”.

“Ignorar as razoes que levaram aqueles homens e mulheres a participarem no massacre” e a ficarem “conotados com o governo colonial portugues e uma forma de nao lidarmos com um passado de violencia, em que a discriminacao nao era apenas relacionada com a cor da pele”.

A literatura tem contribuido, de algum modo, para a reescrita da historia, conclui Ines Nascimento Rodrigues, notando que nas “representacoes do Massacre da Batepa ha um elemento narrativo recorrente: os retros, os fantasmas, que sinalizam precisamente essas dimensoes escondidas” nas narrativas publicas e oficiais.

Na literatura sao-tomense “os trabalhadores contratados surgem normalmente, emergem como fantasmas, como espiritos”, muito proprios da cosmologia de Sao Tome e Principe, onde nao ha “fronteiras estanques” entre “o mundo dos espiritos” e “o mundo dos vivos”.

Como entender?Batepa?

“As relacoes laborais, a questao laboral foi um dos antecedentes mais importantes do massacre”, afirma a agencia Lusa Ines Nascimento Rodrigues, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que esta a fazer doutoramento em “pos-colonialismos e cidadania global”, a partir daquele episodio, ocorrido, ha 62 anos, em Sao Tome e Principe.

Para se entender Batepa, e necessario “perceber a forma como a sociedade colonial funcionava, em termos de trabalho”, sublinha a investigadora, recordando que a exploracao das rocas sao-tomenses foi feita essencialmente a custa da mao-de-obra de “trabalhadores contratados” nas tambem entao colonias portuguesas, sobretudo de Cabo Verde, Angola e Mocambique.

Esses trabalhadores foram para Sao Tome e Principe num “regime de escravatura, mascarado de contrato” (a maior parte dos quais “nunca conseguiu regressar a terra de origem”) e onde viviam em “situacoes muito precarias” e sob forte marginalizacao, tanto por parte dos “colonizadores e administradores das rocas” como por parte dos nativos, sublinha Ines Nascimento Rodrigues.

Alem disso, entre os proprios trabalhadores contratados havia hierarquizacao e discriminacao, designadamente em funcao do pais de origem, com os cabo-verdianos, por exemplo, a sobreporem-se, de algum modo, a angolanos e mocambicanos.

Perante aquele cenario, “foi facil para as autoridades coloniais portuguesas instrumentalizarem, durante o massacre, os trabalhadores contratados” e usa-los como seus executores.

Como refere o antropologo e especialista em estudos africanos Gerard Seibert, o facto de os “trabalhadores contratados” se terem colocado ao “lado do poder colonial” e de terem participado, como executantes, no massacre, deve-se fundamentalmente a propaganda do governo portugues e de este ter imputado aos nativos, particularmente aos forros (descendentes de escravos alforriados), a responsabilidade pelas “muito precarias condicoes de vida” a que estavam sujeitos os “contratados”, salienta a investigadora do CES.

O Massacre de Batepa, que provocou “um numero indeterminado” de mortes (1.032 na versao sao-tomense, uma/duas centenas nos relatos portugueses da epoca) e outras vitimas, em quantidades desconhecidas, nao resultou de “uma simples explosao”, mas culminou “um processo continuo de violencia”.

“Os acontecimentos iniciados [em Sao Tome] em 03 de fevereiro de 1953, que ficaram conhecidos como Massacre de Batepa”, ocorreram fora de um contexto de luta armada, ao contrario do que se passou na generalidade das outras colonias portuguesas, que viveram massacres como Pindjiguiti (Guine-Bissau, 1959) ou Mueda e Wiriyamu [Mocambique, 1960 e 1972, respetivamente), recorda Ines Nascimento Rodrigues.

Mas Batepa ? evento tambem conhecido como Guerra da Trindade, Guerra de Batepa ou Massacre de 1953 ? nao deixa de se assumir tambem como “massacre fundador” para Sao Tome e Principe (nem as suas vitimas deixaram de se tornar herois nacionais), evocado em 03 de fevereiro, feriado nacional no pais e Dia dos Martires da Liberdade.